Apresentação
Por Péricles Mendes
“Aguadeiros se intitulam todas as pessoas que convivem com o rio São Francisco e suas lendas, seja um barqueiro, pescador, lavadeira, todos que de alguma forma fluem, tocam, bebem e mergulham em suas águas correntes. Fazendo do rio um corpo anexo e mais que um correr de águas para o mar, é um corpo fluído, estendido entre o céu e a terra.”
Aguadeiros constitui-se num ensaio a procura de uma poética fotográfica que revele o contexto da navegação do baixo e médio São Francisco, enfatizando a movimentação cotidiana dos ribeirinhos e pescadores entre as paisagens margeadas pelo Velho Xico. A estética pesquisada não tem o caráter de registro sociológico, ainda que se evidenciem elementos.
A atividade fluvial e seus personagens protagonizam as imagens capturadas entre os limites de quatro estados e cidades: No baixo são Francisco, Penedo e Neópolis entre Alagoas e Sergipe; e no médio, Juazeiro e Petrolina entre Bahia e Pernambuco, durante duas viagens entre o período de dezembro de 2007 a agosto de 2009.
Aguadeiros do Velho Xico
por Alejandra Hernández Muñoz*
As imagens que se apresentam aqui resultam de um percurso relativamente informal, imprevisto e espontâneo do artista diante de uma realidade ambiguamente familiar e desconhecida. De início, a curiosidade do aventureiro adentrando o Sertão motiva o processo dos registros; um espírito romântico de descoberta da cultura fluvial do rio São Francisco incita o aprofundamento do olhar fotográfico.
Em termos de composição formal, os recursos empregados são tradicionais: “regra dos terços”, organizações axiais, recorrentes usos de diagonais, relações eqüitativas de luzes e sombras, cheios e vazios, horizontais e verticais, e o uso de pontos focais para a construção de profundidades. Nesse sentido, as séries de dragas e canoas são as mais instigantes como possibilidade de construção de espaço, principalmente nos casos de planos de água que, ambiguamente, constituem planos concretos de referência para a leitura de um limite ao tempo que, mediante a transparência, propõem uma perspectiva de continuidade de algo que acontece na superfície. Os closes em sapatos, chapas de aço e Reflexo na água, oferecem situações metafísicas e atemporais quase místicas. Diversas imagens de grupos de barcos e canoas dissecam uma geometria elementar que remete às rigorosas tabelas de proporções da construção naval, num sentido mais lúdico-criativo do que analítico-científico. Algumas imagens resgatam um sentido transcendental do homem e seu meio, apontando para o valor da simplicidade num sentido despojado de qualquer idealização.
O tratamento dos registros é relativamente purista, sem manipulações ou acréscimo de efeitos na obtenção dos resultados. Na captação, o artista usa um filtro polarizador para separar as cores e dar um alto contraste natural, pelo qual destaca alguns elementos como, por exemplo, as nuvens e a transparência das águas do rio, evidenciando as algas submersas. Em geral, as imagens são capturadas trabalhando a temperatura da cor no próprio equipamento, transgredindo propositalmente o balanço do branco; posteriormente, são editadas digitalmente apenas nos contrastes e saturação de cores.
Os registros têm tempos e espaços diferentes que, paradoxalmente, parecem ter sido anulados na seqüência das imagens. Por um lado, as fotografias, tomadas entre dezembro de 2007 e agosto de 2009, remetem menos ao tempo como dado de situação, horário da captura ou época do ano em que foi realizada a fotografia, e mais no sentido do tempo como longa duração, condição inexorável na paisagem, agente incansável sobre a matéria, protagonista perpétuo sobre a vontade transitória dos homens. Por outro lado, a dimensão espacial das locações também é subvertida. Os contextos geográficos do baixo e médio São Francisco são apresentados numa simbiose de imagens que remetem a uma lógica quase pontual, como se as margens de Penedo e Neópolis, entre Alagoas e Sergipe, e as de Juazeiro e Petrolina, entre Bahia e Pernambuco, não representassem fronteiras de uma realidade muito maior. Os locais sequer são nomeados nos títulos das peças, reforçando com isso qualquer tentativa de ilustrar situações particulares.
Como disse Susan Sontag, “sempre é a imagem que elegeu alguém; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir”. Assim, longe de qualquer intenção descritiva ou exercício antropológico sobre as rotinas das comunidades ribeirinhas do São Francisco, os pequenos instantes são eternizados em detrimento de uma grande narrativa da saga dos pescadores e barqueiros do Velho Xico. Permeadas de uma reticente melancolia, as imagens espremem uma vontade de resgatar elementos que, além de sua possibilidade poética, são um pretexto para a reflexão sobre um cotidiano muitas vezes invisível e ausente na consciência dos grandes discursos.
Alejandra Hernández Muñoz, uruguaia, residente em Salvador desde 1992, é arquiteta, mestre em Desenho Urbano e doutoranda em Urbanismo pelo PPGAU/UFBA. Desde 2002, é Professora de História da Arte da EBA/UFBA; tem diversos trabalhos de história e crítica de arte e arquitetura; foi curadora das mostras Pasqualino Romano Magnavita - 1946-2006: 60 anos de desenho de cidades (Galeria Cañizares EBA/UFBA, abr.2006), Visões do Labirinto (Casarão da EBA/UFBA, nov.2007), EBA 130 anos - EBA Em Processos (Galeria ICBA, mar.2008) e Saccharum BA (MAM-BA, Museu Carlos Costa Pinto e Galeria ICBA, jun./jul.2009), todas realizadas em Salvador.